7.12.08

A antagonista


A sua fala, como na língua espanhola, possui interrogações no começo e no final das perguntas. Aliás, suas afirmativas, exclamações, negações, tudo o que diz vem acompanhado de interrogações antes e depois. Ela sempre fala em tom de dúvida: – “¿Bom dia?” – “¿Cinco pãezinhos? – “¿300 gramas de mussarela?”.

Assim, a verdade não encontra abrigo naquela boca de lábios finos e pálidos. Com voz baixa e feição seca e reticente, planta a imprecisão e a insegurança na mente de seus interlocutores.

Mestre na arte da ambigüidade, se esconde por trás de um óculos sem grau. Não precisa deles para enxergar, mas ajudam a compor o personagem rude que pretendia ser. Somente assim ela poderia deferir aquele olhar de desprezo e indignação, daqueles quando se olha por cima das lentes. “¿Não dá pra ser respeitável sem óculos?” pensou. Seu estilo se completa com uma inseparável pasta onde não carrega nada de importante e um casaquinho de crochê, quase uma segunda pele que não tira nunca, inverno ou verão.

Estudou biologia e arquivologia com o objetivo de realizar seu desejo maior: criar o maior arquivo de folhas secas do mundo. O arquivo definitivo em que cada espécie de folhinha, uma a uma, estivesse seca, catalogada, digitalizada, higienizada e isolada de qualquer contato humano para sempre. Porque “¿O que estraga as coisas é o contato humano?”, pensava. As pessoas fedem, as mãos são gordurosas, os cabelos oleosos, o hálito é ruim. “¿Só eu vejo a sujeira?” tinha a certeza.

Nunca se sentiu odiada, apenas inalcançável, incompreendida e rodeada de imbecis. Por isso não possuía raiva ou rancor, tinha objetivos, metas, cronograma e um plano diretor a ser realizado no prazo de 48 anos. Esse é o tempo de vida que calculava ainda lhe restar, baseada em sua alimentação balanceada e em sua vida regrada, sem sexo, bebidas ou diversão. O último passo de sua grande jornada seria dar início ao grandioso projeto de conservação de corpos humanos, desidratados, empalhados e catalogados.  Seu corpo seria a primeira peça desse grande arquivo morto.

18.10.08

A vida na fazenda em três capítulos com final feliz

Capítulo 1

Abriu a janela, a luz invadiu o quarto, os mosquitos invadiram o quarto, a cobra invadiu o quarto. Olhou pela janela, a cerca estourou, a vaca fugiu, a laranjeira morreu, a Isildinha casou com outro.


Capítulo 2

Abriu a janela, a luz invadiu o quarto, os morcegos invadiram o quarto, o gambá invadiu o quarto. Olhou pela janela, a cerca estourou, a vaca, o bode, o cavalo e as galinhas fugiram, a laranjeira apodreceu, a Rosinha morreu.


Capitulo 3

Abriu a janela, a luz invadiu o quarto, os pássaros invadiram o quarto, a música invadiu o quarto. Olhou pela janela, a vaca pariu, a laranjeira floreceu. Pulou a janela e fugiu com Aninha, a mais bonita.

14.10.08

Projeção de uma vida sem graça para daqui a 50 anos


Hoje saí de casa para furar a bola que uns moleques deixaram cair aqui no quintal. Quando voltei, percebi que onde eu piso a grama morre e não nasce mais. Fiquei me sentindo um Rei Midas às avessas, sabe? Não que eu deteste crianças. Gosto é de manter respeito. É respeito que busco o tempo inteiro. As pessoas não têm mais respeito por nada. Ainda mais por velho, velho sem força, sem defesa. É por isso que eu ando com uma bengala. Não que eu precise dela, minha saúde é ótima. Eu uso a bengala para cutucar as pessoas na fila, no ônibus, na padaria. Essa gente lerda, sabe? Quando vê um velho finge que não viu. Com uma bengala cutucando o rabo quero ver quem é que não vê. Não que eu seja ranzinza. Eu quero é educar. Essa gente toda tá muito mal educada, não tem mais certo ou errado, não tem mais moral. É por isso que eu ando com uma bíblia pregando por onde passo. Não que eu acredite em Deus. Mas uma religiãozinha pra essa gente desmiolada faz muito bem, coloca um cabresto, sabe? Senão esse mundo vira uma pouca vergonha. Não que eu seja moralista. Já fiz muito, fiz mesmo, deu vontade eu fiz. Mas ninguém ficava sabendo. Hoje a gente passa na rua e só tem casalzinho bulinando. As moças novas andam com as pernas e o bucho de fora. Pra essas eu pego a bengala, mostro e balanço. Não que eu seja pervertido. Só estou entrando na onda. Não é pra mostrar o corpo? Então eu mostro!

26.4.08

“História moralizante” ou “Folhetim de um parágrafo”


De pé atrás do balcão, lá pelas tantas da noite, pés feridos por sapato de couro barato, sufocada por um laço no pescoço, estafada pela jornada, dolorida pela posição, estressada pelos gerentes, assediada pelo porteiro, pressionada pelas metas, preocupada com as crianças, desiludida pelo saldo bancário, seguiu com os olhos o 895º cliente do dia. Da entrada até postar-se tete-à-tete, o 895 fez um percurso que lhe pareceu mágico, como quando se empurra a primeira pecinha de um dominó enfileirado. E a última peça era ela, responsável por finalizar aquele processo todo. Foi quando se deu conta de que aquela função que lhe parecia pequena, é parte de um grande conjunto, uma engrenagem mantida por conta de suas feridas, sufocos, estafas, dores, estresses, assédios, pressões, preocupações e desilusões. Então percebeu-se ativa, valorosa e cheia de possibilidades. Mandou o porteiro tomar no cu, cobrou a pensão do pai das crianças, deu para quem estava, há muito, com vontade de dar e abriu seu próprio salão de beleza na garagem de casa.

6.4.08

Fui no show do Ozzy!


Prefiro cair numa roda de gordos suados dando socos do que ficar do lado de tiete. A sorte é que ela não gostava tanto assim de Ozzy e desapareceu depois.

15.3.08

Festa legal


Festalegalcomcomidaboacompalhaçoirritantequenaousavírgulasnem
pontofinalenemseparaaspalavras.