4.11.10

Migalhas

Os olhos famintos vasculhavam o mundo de forma frenética. Era incapaz de manter o olhar fixo em um único ponto. A vista sempre foi eterna busca, uma procura constante por pequenos fragmentos de um mundo melhor. Um aceno distante sem vontade = um orgasmo, um resto = um banquete, um “bom dia” = um discurso. O exagero das sensações era uma forma de potencializar o pouco de vida que chegava àquela criatura sem cor nos lábios, sem luz nos olhos e sem gordura nas carnes. O corpo já havia se acostumado com as privações de comida, de sol, de água, de sexo. Com lambidas, vasculhava os sacos vazios de pão. Essa sensação deixaria qualquer um arrepiado, mas tal atitude provocava nele uma reação sinestésica de prazer: percebia o aroma e o sabor do alimento que esteve ali, sentia as migalhas sendo umedecidas pela saliva, rememorava quando ainda podia comer um pão inteiro, quente, com manteiga e café. No lixo do açougue encontrou um vira-lata devorando verozmente um saco de vísceras, aquele que lhe era reservado especialmente pelo açougueiro uma vez por semana. Não se tratava apenas de um saco de miúdos em estado de putrefação, era o único gesto de compaixão, atenção e solidariedade que recebia havia muitos anos. Não iria perder seu momento mais precioso para um cachorro vira-lata. Então lutou. Mordidas, latidos, gritos. Vísceras podres misturadas com vísceras frescas e pulsantes. Venceu. Decidiu que a grande batalha de toda a sua vida deveria ser celebrada: consumiu os restos do seu oponente ainda com o calor da batalha no corpo, porque todo mundo sabe que inimigo a gente consome cru e com sangue quente, inimigo não se tempera, inimigo não se assa.